Maria no concílio vaticano II

(Texto distribuído no encontro de formação paroquial de 12/05/2017)
I. RESUMO DA CONSTITUIÇÃO LUMEN GENTIUM (21/11/1964), CAP. VIII.
A bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus no Mistério de Cristo e da Igreja.
Na primeira parte, o proêmio (introdução), se aborda o tema da Virgem como mãe de Cristo e seu lugar na Igreja e coloca-se a intenção do documento que é ressaltar o papel de Maria no mistério da encarnação e na Igreja, bem como os deveres dos fiéis para com ela.
Afirma Paulo em Gl 4,4-5 que Deus, “ao chegar a plenitude dos tempos, enviou Seu Filho, nascido de mulher,... a fim de recebermos a filiação adotiva”. O Verbo se encarnou no seio da Virgem Maria e se fez homem, por obra e graça do Espírito Santo. Este mistério da encarnação se perpetua na Igreja, a qual é o Corpo de Cristo tendo a Ele como cabeça. Nela se venera em primeiro lugar a memória gloriosa da sempre Virgem Maria (cf. LG 52).
Maria é mãe de Deus redentor, filha predileta do Pai e templo do Espírito Santo. Ela é também mãe dos membros de Cristo e coopera com seu amor para que nasçam os fiéis. É membro eminente e singular da Igreja, da qual é também tipo e exemplar perfeito na fé e na caridade (cf. LG 53).
A segunda parte trata da Virgem santíssima na economia da salvação e mostra que a mãe do Redentor foi prefigurada e profetizada no AT, sobretudo na vitória contra a serpente (cf. Gn 3,15), bem como em Is 7,14; Mq 5,2-3 que profetiza a Virgem que conceberá e dará à luz um Filho que será chamado Emmanuel (Mt 1,22-23). É a primeira entre os pobres do Senhor e com ela inaugura-se a nova economia da salvação (cf. LG 55).
Em seguida nos fala de Maria na anunciação, ressaltando que o Pai aguardou o sim de Maria, aquela que estava predestinada para ser a mãe do Salvador. Ela foi preparada para a missão que o Pai lhe confiou com dons correspondentes e preservando-a do pecado. Por isso mesmo é saudada como “cheia de graça” (Lc 1,28) pelo anjo, ao qual responde com plena entrega à vontade de Deus, fazendo-se escrava humilde. Ela serviu pela graça ao Mistério da Redenção, cooperando livremente com sua fé e obediência para a salvação dos seres humanos, por isso é a Nova Eva (cf. LG 56).
Maria associou-se à obra da salvação desde sua concepção virginal de Cristo até à sua morte. Acompanhou Jesus em todos os seus passos, desde a infância (LG 57), passando por sua vida pública até a cruz, na qual foi entregue como mãe ao discípulo amado (LG 58). Permaneceu unida à Igreja nascente na expectativa de Pentecostes, no qual recebeu o dom do Espírito e, por fim, foi elevada em corpo e alma ao céu (cf. LG 59).
Na terceira parte o documento fala-nos de Maria e sua relação com a Igreja. O concílio esclarece que a função maternal de Maria para com os seres humanos, contribuindo para sua salvação, deriva dos méritos de Cristo e funda-se na única mediação de Cristo e dela depende inteiramente (cf. LG 60).
Maria é nossa mãe na ordem da graça por ter cooperado de modo singular, com sua fé, esperança e caridade, na obra salvadora de Cristo (LG 61). Esta maternidade de Maria em relação a nós perdurará até a consumação dos tempos, sempre como participação na única e eficaz mediação de Cristo, à qual nada tira ou acrescenta, pois sua função mediadora é subordinada à de Cristo (cf. LG 62).
Maria é tipo e figura da Igreja como virgem e mãe, visto que ela coopera com amor de mãe para a geração e educação dos fiéis em Cristo, o primogênito de muitos irmãos (cf. Rm 8,29) (LG 63). A Igreja, a exemplo de Maria é mãe, recebendo fielmente a Palavra, pregando a Boa-Nova e administrando o Batismo que gera novos filhos para Deus, para a vida imortal. Ela é também virgem enquanto guarda a fidelidade total e pura ao Esposo Cristo e conserva virginalmente a fé, a esperança e a caridade (cf. LG 65).
Maria é modelo de virtudes e, neste sentido, a Igreja procura imitá-la progredindo na fé, esperança e caridade, bem como manifestando seu afeto maternal através de todos que cooperam na missão evangelizadora (cf. LG 65).
Na quarta parte fala-se do culto à bem-aventurada Virgem Maria, o qual a situa abaixo de Cristo, mas a coloca acima dos anjos e santos. É um culto especial, no qual é honrada com o título de “Mãe de Deus”, mas difere do culto de adoração que só é prestado à Santíssima Trindade. Ao honrar Maria, os fiéis devem desejar conhecer melhor, amar e glorificar o Filho, bem como cumprir seus mandamentos (cf. LG 66).
O concílio pede que se incentive o culto à Virgem Maria, sobretudo o Litúrgico, mas tendo em grande estima também os exercícios da piedade popular. Exorta aos teólogos e pregadores que instantemente evitem “com cuidado, tanto um falso exagero como uma demasiada estreiteza na consideração da dignidade singular da Mãe de Deus”. E mais: “Evitem com cuidado, nas palavras e atitudes, tudo o que possa induzir em erro acerca da autêntica doutrina da Igreja os irmãos separados ou quaisquer outros”. A verdadeira devoção nasce da fé, nos faz amá-la e imitá-la e, portanto, é diferente de uma emoção estéril e passageira (cf. LG 67).
Por fim, na quinta parte, Maria é apresentada como “sinal de segura esperança e de consolação para o Povo de Deus peregrinante”. Estando a Mãe de Jesus glorificada em corpo e alma, ela é sinal de nosso destino escatológico: a vida eterna (cf. LG 68).
O concílio conclui o documento exortando a todos para que dirijam uma fervorosa súplica à Mãe de Deus e dos homens para que todos, pela graça, cheguem à unidade no único Povo de Deus: os povos, os cristãos e os que ainda não conhecem Cristo (cf. LG 69).
II. CARACTERÍSTICAS DA MARIOLOGIA DO CONCÍLIO VATICANO II
[Os textos a seguir são trechos de uma pregação do Pe. Raniero Cantalamessa, ofm, num retiro pregado no Advento para a Casa Pontifícia – ver a fonte no final deste texto (1)].
1. A MARIOLOGIA DA LUMEN GENTIUM
(...) A maior novidade do tratado conciliar sobre Nossa Senhora consiste, como se sabe, justamente no lugar em que foi colocado, ou seja, na constituição sobre a Igreja. Com isso o Concílio – não sem sofrimentos e lágrimas – operava uma profunda renovação da mariologia, em comparação com os últimos séculos. O discurso sobre Maria não é independente, como se ela ocupasse um lugar intermédio entre Cristo e a Igreja, mas recolocado, como tinha sido na época dos Padres, no âmbito da Igreja. Maria é vista, como dizia Santo Agostinho, como o membro mais excelente da Igreja, mas um membro dela, não fora, ou acima dela:
“Santa é Maria, bem-aventurada é Maria, porém, mais importante que a Virgem Maria é a Igreja. Por quê? Porque Maria é uma parte da Igreja, um membro santo, excelente, superior a todos os demais, contudo, é um membro de todo o corpo. Se é um membro de todo o corpo, sem dúvida, mais importante que um membro é o corpo”.
As duas realidades se iluminam mutuamente. Se, de fato, o discurso sobre a Igreja ilumina o que é Maria, o discurso sobre Maria ilumina o que é a Igreja, ou seja, “corpo de Cristo” e, como tal, “quase que uma extensão da encarnação do Verbo”. São João Paulo II destaca isso na sua encíclica Redemptoris Mater:
“Apresentando Maria no mistério de Cristo, o Concílio Vaticano II encontra também o caminho para aprofundar o conhecimento do mistério da Igreja”.
Outra novidade da mariologia do Concílio é a insistência na fé de Maria, um tema também retomado e desenvolvido por João Paulo II que o faz tema central da sua encíclica mariana “Redemptoris Mater”. É um retorno à mariologia dos Padres que, mais do que sobre os privilégios da Virgem, apela à sua fé, como contribuição pessoal de Maria no mistério da salvação. Também aqui se nota a influência de Santo Agostinho:
“Ora, até a própria bem-aventurada Virgem Maria, ao crer, concebeu a quem deu à luz crendo... Depois que o anjo falou, ela, cheia de fé (fide plena), concebendo a Cristo antes no coração que no ventre, respondeu: Eis aqui a Serva do Senhor, faça-se em mim segundo a vossa palavra”.
2. MARIA MÃE DOS CRENTES EM PERSPECTIVA ECUMÊNICA
O que eu gostaria de fazer é iluminar o caráter ecumênico dessa mariologia do Concílio, ou seja, como ela possa contribuir – e mais ainda, já está contribuindo – para aproximar católicos e protestantes neste terreno delicado e controverso que é a devoção à Virgem.
Para entender, por exemplo, da forma mais correta, o delicado conceito da mediação de Maria na obra da salvação, é mais útil começar pela mediação criatural, ou de baixo, como é aquela de Abraão, dos apóstolos, dos sacramentos e da própria Igreja, e não da mediação divino-humana de Cristo. (...)
Agora, tiremos de tudo isso a conclusão. Se Abraão, pelo que fez, mereceu na Bíblia o nome de “pai de todos nós”, ou seja, de todos os crentes (cf. Rm 4, 16; Lc 16, 24), entendemos melhor, assim, como a Igreja não hesita em chamar Maria “Mãe de todos nós”, mãe de todos os crentes.
Dessa comparação entre Abraão e Maria podemos derivar uma luz ainda maior, que afeta não só o simples título, mas também o seu conteúdo e significado. Mãe dos crentes é um simples título de honra, ou algo a mais? Aqui se prefigura a possibilidade de um discurso ecumênico sobre Maria. Calvino interpreta o texto onde Deus diz à Abraão: “Em ti serão abençoadas todas as famílias da terra” (Gn 12, 3), no sentido de que “Abraão será não só exemplo e patrono, mas causa de benção”. (...)
Tudo isso nos ajuda a entender o que a tradição, a partir de Santo Irineu, diz de Maria: que ela não é só um exemplo de benção e de salvação, mas, de uma forma que depende unicamente da graça e da vontade de Deus, também causa de salvação. “Como Eva, escreve Santo Irineu, desobedecendo, tornou-se causa de morte para si e para todo o gênero humano, assim Maria..., obedecendo, tornou-se causa de salvação para si e para todo o gênero humano”. As palavras de Maria: “Todas as gerações me chamarão de bem-aventurada” (Lc 1, 48) devem ser consideradas, também, “uma ordem dada por Deus para a história”.
É um fato encorajador verificar que os mesmos iniciadores da Reforma reconheceram à Maria o título e a prerrogativa de Mãe, também no sentido de Mãe nossa e mãe da salvação. Em uma pregação para a Missa de Natal, Lutero dizia: “Este é o consolo e a transbordante bondade de Deus: que o homem, enquanto crente, possa gloriar-se de um bem tão precioso, que Maria seja a sua verdadeira mãe, Cristo o seu irmão, Deus o seu Pai... Se acredita nisso, então, sente-te verdadeiramente no ventre da virgem Maria e seja o seu filho querido”. Zwingli, em um sermão de 1524, chama Maria “a pura Virgem Maria, mãe da nossa salvação” e diz que nunca, a seu respeito, “pensou e nem sequer ensinou ou afirmou em público algo de ímpio, desonroso, indigno ou ruim”. (...)
Este não é o lugar para fazer uma revisão histórica; somente quero dizer qual me parece ser o caminho correto para sair desta triste situação sobre Maria. Tal caminho passa por um sincero reconhecimento, de nós católicos, do fato que, muitas vezes, especialmente nos últimos séculos, contribuímos para fazer Maria inaceitável para os irmãos protestantes, honrando-a de forma, às vezes, exagerada e imprudente e, especialmente, não colocando tal devoção dentro de um quadro bíblico bem claro que mostrasse o papel subordinado com relação à Palavra de Deus, ao Espírito Santo e ao próprio Jesus. A mariologia nos últimos séculos tornou-se uma fábrica contínua de novos títulos, novas devoções, muitas vezes polêmica com os protestantes, usando, às vezes, Maria – a Mãe comum! – como uma arma contra eles.
A esta tendência o Concílio Vaticano II reagiu oportunamente. Ele recomendou que os fiéis “tanto nas palavras como nos fatos evitem diligentemente tudo o que possa induzir ao erro os irmãos separados ou qualquer outra pessoa, sobre a verdadeira doutrina da Igreja”, e recordou aos próprios fiéis que “a verdadeira devoção não consiste nem em uma estéril e passageiro sentimentalismo, nem em uma certa e vã crença”.
Do lado protestante, acredito que exista a necessidade de tomar nota da influência negativa que houve, na atitude deles sobre Maria, não só a polêmica anticatólica, mas também o racionalismo. Maria não é uma ideia, mas é uma pessoa concreta, uma mulher, e como tal, não se presta para ser facilmente teorizada ou reduzida a princípio abstrato. Ela é o próprio ícone da simplicidade de Deus. Por isso não podia, em um clima dominado por um exasperado racionalismo, não ser eliminada do horizonte teológico.
Uma mulher luterana, morta há alguns anos, Madre Basilea Schlink, fundou uma comunidade de religiosas dentro da Igreja luterana, chamadas “As irmãs de Maria”, agora difundidas em vários países do mundo. Em um livreto seu, que eu mesmo organizei a edição italiana, depois de ter recordado vários textos de Lutero sobre Maria, escreve:
“Ao ler as palavras de Lutero que até o fim da sua vida honrou Maria, santificou as suas festas e cantou todos os dias o Magnificat, sente-se o quanto se distanciou, no geral, da correta atitude sobre ele... Vemos o quanto nós, evangélicos, nos deixamos submergir pelo racionalismo... O racionalismo que admite só o que se pode compreender com a razão, difundindo-se, jogou fora das Igrejas evangélicas as festas de Maria e tudo o que se refere à ela, e fez perder o sentido de toda referência bíblica a Maria: e desta herança sofremos ainda hoje. Se Lutero, com esta frase: ‘Depois de Cristo ela é, em todo o cristianismo, a joia preciosa, jamais louvada o suficiente’, nos inculca este elogio, eu, de minha parte, devo confessar de estar entre aqueles que, durante longos anos da própria vida, não o fizeram, contornando até o que diz a Escritura: "De agora em diante todas as gerações me chamarão bem-aventurada” (Lc 1, 48). Eu não tinha me colocado entre estas gerações”.
Todas estas premissas nos permitem cultivar no coração a esperança de que, um dia, não distante, católicos e protestantes possamos não estar mais divididos, mas unidos por Maria, em uma comum veneração, diferente nas formas, mas unânimes no reconhecer nela a Mãe de Deus e a Mãe dos crentes. Eu tive a alegria de constatar pessoalmente alguns sinais desta mudança em ato. Em mais de uma ocasião, pude falar de Maria a um auditório protestante, notando entre os presentes não só a acolhida, mas, pelo menos em um caso, uma verdadeira emoção, como a redescoberta de algo caro e uma purificação da memória. (...)
(1) Fonte: http://www.news.va/pt/news/francisco-participa-da-ultima-pregacao-do-advento
(acessado em 19/12/2015)
SUGESTÃO DE LEITURA:
BOFF, Frei Clodovis M. O cotidiano de Maria de Nazaré. Editora Ave-Maria: São Paulo.